É cinema? É televisão? Nem um, nem outro. É uma série de ficção protagonizada por Kevin Spacey, remake do inglês da BBC, adaptado de um romance.
Francis Underwood é um congressista norte-americano, político profissional, calejado de mais de 20 anos no cargo, senhor de influências e segredos sobre muitos dos companheiros de partido.
Francis Underwood é um congressista norte-americano, político profissional, calejado de mais de 20 anos no cargo, senhor de influências e segredos sobre muitos dos companheiros de partido. Depois da eleição presidencial ter bafejado o candidato que decidiu apoiar, Francis decide que está na hora de cobrar o favor e ambiciona o cargo de Secretário de Estado, o equivalente ao nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros. Infelizmente o recém-eleito presidente e a sua equipa têm outras ideias e acabam por deixar Francis de fora da nomeação desejada. Mas Underwood não aceitará tão calmamente a derrota e põe em marcha um plano para ajustar contas.
Para onde foi o público? Uma pergunta que os operadores de televisão portugueses podem ainda não se ter colocado, mas que nos Estados Unidos é uma realidade dolorosa, com as mais bem sucedidas séries do prime-time a atingirem resultados de audiência que seriam um embaraço há pouco mais de uma década atrás. Os padrões de consumo televisivo alteraram-se. A massificação do sinal de cabo e consequente sucesso dos canais premium como a HBO e o Showtime permitiram que existisse uma migração para outros conteúdos, sem as restrições apertadas da responsabilidade de emissão para público generalizado, nem necessidade de aplacar a ira dos anunciantes.
A revolução digital e a presença constante da internet no nosso dia-a-dia, hora-a-hora trouxe outra novidade. Plataformas de distribuição digital como o Netflix tornaram os vídeo-clubes em algo obsoleto e moribundo, servindo o conteúdo directamente em casa de qualquer cliente e eliminado os custos associados ao aluguer de espaço físico. Um modelo de negócio implacável que começa agora a migrar para a geração de conteúdos próprios capazes de fidelizar público.
Em simultâneo com estas alterações no Audiovisual, também o Cinema passou nas últimas décadas por mudanças significativas. Para um meio cuja Morte está anunciada praticamente desde o seu início tem revelado uma capacidade de reinvenção e sobrevivência notáveis. O advento do Blockbuster em meados da década de 1970 trouxe, no entanto, uma novidade sísmica. Um novo público, facilmente motivado e com disponibilidade financeira e emocional para investir em heróis e vilões arquetípicos deu origem a toda uma nova forma de fazer Cinema e de o publicitar. Dinheiro jorrou para os cofres dos estúdios que melhor e mais cedo perceberam a nova vaga.
No entanto, como qualquer acção tem uma reacção oposta, os lucros já não são os mesmos. Os custos de produção aumentaram e a quantidade de remakes, sequelas, prequelas, reimaginações, readaptações e reboots saturou o mercado e os próprios criadores. E é aqui que encontramos David Fincher e Kevin Spacey. Frustrado com a limitada duração de um filme a duas horas, duas horas e meia, o realizador decidiu que queria experimentar um formato que lhe permitisse explorar outras formas, mais longas, de contar uma estória. O estúdio MRC procurava um canal de televisão interessado para iniciar a produção de House of Cards, do qual havia adquirido os direitos de adaptação, mas acabou por ser um distribuidor de conteúdos online, Netflix, a ganhar a licitação, sendo esta a primeira série que distribui aos seus assinantes, de forma também inovadora. Atento à tendência cada vez maior de consumir ficção televisiva através de vários episódios consecutivamente, esta série estreou a totalidade da sua primeira temporada no passado dia um de fevereiro.
E que série é esta? Além de lhe questionar a genealogia logo no título e sendo uma readaptação de material publicado, ironicamente algo que vimos no parágrafo anterior poder ter efeitos nefastos, a verdade é que existe algo de diferente e fresco nesta série, mesmo que seja uma familiaridade com um dos grandes exemplos do cinema político dos anos 70. É inevitável olhar para a redacção do jornal onde trabalha a co-protagonista Zoe Barnes e pensar em Os Homens do Presidente, de Alan J Pakula. A mesma cadeia de maquiavelismo permeia ambas as estórias, assim como a mesma opacidade aos eleitores sobre o que verdadeiramente move as engrenagens do poder. Notável a forma como Kevin Spacey se dirige secamente a um manifestante mentalmente perturbado no final do segundo episódio: “Ninguém te ouve. Ninguém se preocupa contigo. Nada resultará disto”. Francis Underwood é o nosso guia no implacável mundo da política. Frio, calculista, maquiavélico mesmo, Francis não hesita quando em aproveitar a ingenuidade de um legislador reformista, apenas para ganhar crédito e o conforto junto daqueles que pretende destruir. Interpretação plena de subtileza de Kevin Spacey, quebrando a quarta parede, instruindo o público naquilo que vai fazer, olhando de relance para a câmara quando consegue que o seu opositor faça exactamente aquilo que pretende, sem que o mesmo se aperceba que caiu numa ratoeira.
Interessante também o olhar dedicado ao jornalismo, aqui presente na personagem interpretada por Kate Mara. Ambiciosa e tenaz Zoe Barnes, aprendiz de Underwood numa relação ao estilo Woodward e Bernstein com o “Garganta Funda” Mark Felt. Dos dois episódios estreados em Portugal são para já evidentes o cuidado na construção da tensão narrativa e da matização das personagens. Mais se espera nos próximos episódios de uma série que seguirá para uma segunda temporada.
Como classificar este conteúdo audiovisual? A sua narrativa prolongada grita Televisão, mas a forma de distribuição parece sugerir Cinema, ainda que noutra plataforma que não as tradicionais salas. O seu conteúdo encontraria dificuldade em sobreviver num meio refém de audiências e contagens compulsivas de público e bilheteira, mas a sua qualidade é inegável e forma de distribuição uma novidade que pode trazer alterações significativas nos próximos anos.
Uma novidade que terá sequelas, uma vez que também o serviço Netflix tem já em fase final de produção uma temporada de Arrested Development, fazendo assim o regresso de conteúdo que não encontrou público suficiente na sua vida original num canal de televisão norte-americano.