Eric Packer é um prodígio da finança. Aos 28 anos é um dos mais ricos homens do meio e hoje decidiu que quer atravessar uma cidade de Nova Iorque invadida por uma comitiva presidencial apenas e só porque quer um corte de cabelo.
Não sou um conhecedor profundo da obra de David Chronenberg. De acordo com o que li, e o pouco que vi, a sua carreira de autor sempre se focou mais no que se designa como “body-horror”, um questionamento dos limites do corpo humano, a própria questionação de o que é o corpo humano e para que serve. No entanto é óbvio que nos anos mais recentes, coincidindo com o que tenho visto de forma mais atenta, este foco de pesquisa se tem deixado de ocupar da habitação física para questionar na mesma medida aquilo que nos faz mover. Não somos apenas um aglomerado de carne e ossos à espera da decomposição da matéria em estado inerte e tem de haver algo mais que nos propulsiona. Uma vontade, um condicionamento, um pensamento. “Uma História de Violência” e “Um Método Perigoso” analisam estes assuntos.
“Cosmopolis”, no entanto, não se ocupa apenas da alma de um indíviduo e analisa um meio de vida, a praxis e o ethos de um mundo muito específico. Baseado, e diz-se mesmo transposto quase literalmente para o grande ecrã, na obra homónima de Don Dellilo, Cosmopolis apresenta-nos em Eric Packer uma personagem central como avatar do mundo da especulação financeira e, de um modo mais abrangente, do Capitalismo Predatório que tomou conta do mundo a partir dos anos 80. Gordon Gekko dizia que a “Ganância é Boa” e levámos esta afirmação à letra, não tratando de a interpretar através da prisão e derrota do protagonista de “Wall Street” (Oliver Stone, 1987). Este sentimento foi deixado à solta, tomado como o sinal saudável de uma sociedade saudável e em evolução e, como resultado, o mundo implodiu sob o seu peso.
Divago. Voltando ao filme. Como já referi, Eric Packer é-nos apresentado como um avatar do mundo da finança moderna, uma indústria que apenas marginalmente pode ser considerada como tal e as pistas são-nos dadas ao longo do filme. Citações como “o dinheiro perdeu a sua narrativa”, tornou-se um bem abstracto, interdependente com a ciber-existência simbolizada no interior ultra-moderno da limusina do magnata. Um interior que não deixa de evocar o isolamento com o resto do mundo, insonorizando-o ao mesmo tempo que coloca o seu ocupante num trono, uma pequena sala real onde vai recebendo os seus mais próximos súbditos-colaboradores e onde é mesmo alvo de uma consulta de rotina. Tudo bem organizado para que o espectador não se esqueça que o que vê é nada menos que um rei atravessando um domínio a seu bel-prazer. Não se trata, no entanto, de uma figura régia vinda da história antiga. Não possui o que se pode caracterizar como as qualidades de uma figura vinda de uma educação clássica e, como tal, comporta-se como todos os representantes do “Novo Dinheiro”, dando simultaneamente novas pistas para uma caracterização do Capitalismo Moderno: não hesita em insistir para lá do razoável em comprar um mosteiro inteiro apenas porque gosta das pinturas que alberga, mantém a farsa de um casamento com uma herdeira de uma fortuna de família, o “Dinheiro Antigo” que parece sempre reflectir alguma respeitabilidade e evidencia a arrogância do sentimento de posse apenas por si próprio quando se refere a um antigo bombardeiro soviético obsoleto que adquiriu e mantém num hangar “é meu, passo lá para o ver”.
Nesta altura já o espectador se questiona de onde vem e qual a dimensão desta fortuna. Pois bem, Eric Packer é um jogador de casino. Típica actividade do Capitalismo Predatório, Eric aposta e gere um fundo que joga sobre as variações de mercado de unidades monetárias. Durante o filme o que lhe dá mais problemas e irá mesmo consumir uma parte considerável da fortuna é o yuan, a moeda da China. E é a partir daqui, do desaparecimento de uma fortuna em menos de um dia que verificamos a capacidade auto-destrutiva de Eric, novamente reflectida em todos os seus pares. A viagem através da cidade não passou de um pretexto para uma necessidade de sentir uma ligação ao mundo que o gerou, sendo o barbeiro um amigo do pai, mas nem isso já o consegue mover “tornei-me indiferente”, afirma a certo ponto. No entanto, não é essa a tragédia que Cronenberg acaba por nos apresentar. Ao repetir ao longo do filme a insistência de Eric em ser analisado diariamente por médicos, e a sua surpresa por uma assimetria em particular, o realizador chama-nos a atenção para o próprio desconhecimento que a personagem tem de si. Não só um desconhecimento primordial, mas também um estranhamento adquirido, incapaz já de se reconhecer. Algo que é ainda mais evidenciado quando, perto do final, alguém lhe exclama, e por arrasto a todo o Capitalismo, “queria que me salvasses”, uma evidência não só do estranhamento mas também do desespero e da desilusão.
Denso e capaz de capaz de despoletar no espectador uma série de reflexões sobre o mundo em que vivemos, com os seus longos diálogos enquadrados por uma realização que não faz da distracção visual uma arma, Cosmopolis não será um filme fácil para o público mais habituado a ver o seu protagonista em outros papeís. O que poderia ser uma limitação, dadas as dificuldades expressivas já conhecidas de Robert Pattinson, acaba por funcionar em favor da caracterização externa desta personagem, Eric Packer é frio e calculista, um Gordon Gekko para o século XXI.